MULHERES DE LUTA

PorExpresso das Ilhas,20 jan 2020 6:32

Este ano, várias actividades das comemorações do 20 de Janeiro, Dia dos Heróis Nacionais, são especialmente dedicadas às Heroínas. Recuperamos aqui uma reportagem publicada em Abril de 2015, no Expresso das Ilhas, da autoria de Jorge Montezinho, com a colaboração de Roberto dos Santos (Rádio Morabeza), e que fala de quatro mulheres que tiveram um papel importante na Luta de Libertação.

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Se é verdade que cada mulher é um mundo, também é verdade que cada mulher dá a sua contribuição para mudar o mundo. A luta de libertação não foi excepção. Ao lado dos homens estiveram mulheres que partilharam os actos de heroísmo, os momentos de angústia, as horas de medo, os arrebatamentos de coragem. Elizabeth, Ana Maria, Maria Ilídia, Josefina, são quatro rostos dessa história.

Há um momento comum nas histórias destas quatro mulhe­res: todas tiveram a noção des­de pequenas que alguma coisa não estava bem e que o colonia­lismo era a raiz dos problemas que Cabo Verde e outros países africanos enfrentavam. Eliza­beth Reis habituou-se a ver o sofrimento dos cabo-verdianos desde muito cedo. Em Santa Catarina, Santiago, onde viveu os primeiros anos, via as pes­soas que sofriam nos momen­tos de seca, nos momentos de crise. Assistiu à partida dos contratados para as roças de São Tomé e Príncipe e o seu regresso de mãos vazias e com as costas riscadas pelas marcas do chicote.“As pessoas viviam numa situação desumana. Não havia apoios às famílias, não havia cuidados médicos, tínha­mos falta de tudo”, diz ao Ex­presso das Ilhas.

A mãe enviuvou cedo, dois irmãos estudavam em Portu­gal. Elizabeth tem a oportuni­dade de ir para França, encora­jada por uma prima que lá vivia e trabalhava. À chegada a Paris, em 1967, conhece Pedro Pires, apresentado por um conterrâ­neo também de Santa Catarina.Desse encontro começa o seu comprometimento com a luta pela independência. Assumiu tarefas diversas, nomeada­mente de mensageira. Em 68, aproveitando a efervescência que o mês de Maio provocou em França, com as revoltas dos estudantes e o fecho das es­colas, desloca-se em missão a Portugal, para entregar corres­pondência e orientações do se­cretário-geral do PAIGC, Amíl­car Cabral. Tinha de contactar várias pessoas, de quem só co­nhecia os nomes de guerra; foi quando conheceu Carlos Reis, que viria a ser o marido e pai dos seus dois filhos. No regres­so, vai a Conakry prestar con­tas, mas vai também com uma dupla perspectiva: conhecer melhor a realidade da luta na Guiné e regressar a Paris para continuar o trabalho iniciado, que foi assumindo fases novas. Tinha então vinte e dois anos. Esta nova fase foi, inicialmen­te, de apoio aos camaradas que saíam de Portugal, fugindo à mobilização para o exército co­lonial, e depois orientá-los em direcção à sede do secretariado do PAIGC em Conakry. Era Eli­zabeth quem fazia essa ligação, recebia os bilhetes, comunicava as chegadas deles. João Pereira da Silva, Jota Jota, Eduardo Alhinho, Paula Fortes, Mário Cabral, Hugo Borges, foram alguns dos combatentes que Elizabeth Reis acompanhou. Atendendo à imagem que o PAIGC tinha, na altura, “os es­tudantes, geralmente, tinham a expectativa de encontrar uma estrutura semelhante a uma embaixada, o que não aconte­cia, porque o que havia era um pequeno quarto de estudante”, recorda.

Na Europa, sonhava seguir para Conakry. Esteve lá algum tempo, mas a direcção do par­tido achou que o trabalho mais importante seria em Paris, onde teria a possibilidade de encontrar gente, realizar mis­sões de contato, fornecer infor­mações, transmitir orientações da direção e mandar para Por­tugal o que havia para mandar, porque esses estudantes que estavam em Portugal é que depois estabeleciam a ligação com Cabo Verde. De cada vez que era chamada a Conakry, trabalhava com crianças, na iniciação à leitura e à escrita, mas acabava sempre por vol­tar a Paris, onde era um elo de ligação entre a Europa e Cabo Verde, através de Portugal, num trabalho delicado, pacien­te e clandestino.

As mensagens tinham que ser escondidas e os artifícios usados eram vários. Seleccio­nava pessoas insuspeitas para a polícia política portuguesa, como um casal francês que foi orientado a passar a lua-de­-mel a Portugal e assim levar mensagens, correspondência e revistas, que davam conta da luta na Guiné.

Depois da viagem de 68 as coisas complicaram-se porque as suspeições da polícia portu­guesa em relação à sua pessoa transformaram-se em certezas, sobretudo quando Fernando Tavares foi preso com uma car­ta sua. Certo é que já não podia viajar para Portugal. Nasce a primeira filha. Em Paris, Eliza­beth tinha de se sustentar para se manter; cada deslocação significava recomeçar tudo de novo, no plano do sustento ma­terial; não se podia contar com a compreensão do patrão fran­cês; os documentos necessários que lhe permitiam viver no país europeu, o cartão de residência e a autorização de trabalho, ti­nha de ser legalizados.

Acabou por ser denuncia­da. Tinha participado numa última missão com Amílcar Cabral, em Argel, uns meses antes da sua morte. Regressa a Paris e no dia seguinte é cha­mada à polícia. As autoridades francesas são muito claras, disseram-lhe que tinha autori­zação de residência, que tinha autorização de trabalho, mas estava impedida de fazer polí­tica porque tudo o que disses­se, ou fizesse, contra Portugal seria considerado uma atitude contra um aliado de França e que eles teriam o direito de, a qualquer momento, entregá­-la às autoridades portuguesas. Passa a ser vigiada. Chegava a casa e a porta que tinha dei­xado fechada estava aberta, a cómoda mexida. Uma chefe de serviço tenta saber quais são as suas ideias políticas. Adoece gravemente e está em processo de convalescença quando se dá o 25 de Abril.

Começa então a notar peque­nas diferenças. Ainda não tinha liberdade para fazer muita coi­sa mas já não sentia tanta pres­são. A vigilância já não era tão apertada. Vem a Cabo Verde no início de 1975, o companheiro, Carlos Reis já cá estava porque fazia parte do primeiro governo de transição. Tem outro proble­ma de saúde e regressa à Euro­pa com a certeza que passaria a festa da independência em Cabo Verde. Isso acabou por não acontecer e só regressa de vez a 30 de Outubro de 75. “É uma lacuna na minha vida. São coisas que não se repetem”, diz.

Em Cabo Verde trabalha no ensino, tarefa que executa até à reforma, com a excepção de um ano em que trabalhou na cooperação. “Nunca quis fazer vida política. Tive momentos tão conturbados, sem vida fa­miliar. Preferi dedicar-me à fa­mília e ao trabalho”.

Se pudesse voltar atrás no tempo, Elizabeth Reis garante que faria tudo de novo. “Co­nheci grandes vultos, homens e mulheres, todos jovens na al­tura, e ficaram amizades muito boas. As mulheres abraçaram a luta em várias frentes, na luta armada, ligadas à saúde, ao en­sino, nas reuniões nas Taban­cas. Tivemos um papel impor­tante junto dos homens”.

Josefina Chantre é rebelde desde que se lembra. Não sabe explicar porquê, sabe apenas que já nasceu assim. No Paúl, Santo Antão, onde passou a me­ninice, nunca sentiu nenhum tipo de discriminação. Nem em Portugal, onde faz o curso de serviço social. Mas Angola, para onde foi trabalhar, deu início à sua consciencialização política. Nos Musseques de Lu­anda, na zona periférica, come­ça a notar que havia muita dis­criminação, as populações não viviam condignamente, falta­va-lhes tudo.“Acho que todo o ser humano nasce igual e deve ter à sua disposição o mínimo para sobreviver”, diz ao Ex­presso das Ilhas. Em 1962 vai para o interior de Angola, onde a consciência política vai ama­durecendo, quanto mais avan­çava pelo país adentro mais as desigualdades eram visíveis e gritantes. Junta as licenças e regressa a Portugal quatro anos depois. Em Lisboa con­tacta com outros estudantes, começavam a soprar os ventos do panafricanismo, algumas colónias já tinham mesmo con­seguido a independência.

Na capital portuguesa é con­tactada pelo Amaro da Luz e é através dele que vai ter com um namorado moçambicano que já tinha dado o salto. Via­jam para a Suécia, para Roma e da capital italiana para a Ar­gélia, uma placa giratória para todos os membros dos movi­mentos de libertação, PAIGC, FRELIMO, MPLA, mesmo os comunistas portugueses. O ob­jectivo era chegar à Tanzânia, onde a FRELIMO tinha a sua base, mas não consegue. Entre­tanto, contacta Amílcar Cabral, que estava em Argel, e diz-lhe que tinha tomado a decisão de “juntar-se aos camaradas de Conakry”. Não foi fácil conven­cer o líder mas este, perante a insistência de Josefina, acaba por aceitar.

À chegada a Conakry, Ca­bral informa-a que ia dar aulas. Josefina nega, não gostava de ensinar. Acaba por ir trabalhar com Cabral no secretariado. A primeira tarefa: actualizar o jornal Libertação. A partir de certa altura passa também a fazer programas de rádio, em crioulo do Barlavento, para Cabo Verde. “Era fundamental dizer aquilo que se fazia no ter­reno. Cabral sempre privilegiou a divulgação da nossa luta, por­que dizia que não se podia tra­balhar e não divulgar”, conta.

Depois do assassinato de Ca­bral, Josefina Chantre regressa à Argélia, onde recebia os co­municados de guerra. Depois do sentimento de perda pro­vocado pelo desaparecimento físico do líder da luta armada, receber as notícias dos abates dos aviões servia para aliviar a tristeza. “Foi a única maneira de obrigarmos os colonialistas a sentarem-se à mesa”.

Mas, a luta tinha uma outra frente, menos visível, as pró­prias mulheres estavam tam­bém num processo de eman­cipação. Cabral já tinha dado o mote nos estatutos do partido dizendo, por exemplo, que nos comités de tabanca constituí­dos por 5 elementos, 2 tinham de ser mulheres, paridade an­tes do tempo. “Não há nenhu­ma sociedade que se possa de­senvolver ou ter pretensões a ser desenvolvida esquecendo essa metade do céu”, sublinha Josefina Chantre. “Ainda fiquei mais cinco anos na Guiné, mas as camaradas que lutaram e vieram, tiveram um papel re­levante na caracterização do papel da mulher, nos vários domínios, económico, social e cultural para provar ao parti­do, da altura, que era efectiva­mente necessária essa discri­minação positiva. Ainda hoje é necessária, imagine em 1975”.

Apesar de toda a participa­ção feminina na luta e no pós independência, Josefina Chan­tre admite que o papel das mulheres tem sido apagado.“A culpa é nossa. A história tem sido escrita por homens e te­mos de começar a escrever a nossa própria história. O papel da mulher não ficou aquém do papel do homem. Sem nós não teria havido libertação, nem da Guiné nem de Cabo Verde. Há mulheres heroínas, há mulhe­res que contribuíram de for­ma excepcional. É um desafio, sentarmo-nos para escrever as nossas memórias, porque te­mos muito para contar. A mu­lher foi tudo”.

Ana Maria Cabral é peremp­tória, aprendeu a ser anti colo­nialista na Casa do Império, nos anos 50, mas já antes tinha a noção do que era a discrimina­ção. Nascida na Guiné-Bissau, emigra para Angola muito nova porque o pai, médico, tinha sido deslocado para essa colónia. Em Luanda, frequenta a escola portuguesa, onde eram raros os alunos africanos. “Em Angola o racismo era tremendo”, refere ao Expresso das Ilhas, “muito mais do que na Guiné-Bissau. Como o meu pai era médico, permitiram que os filhos fre­quentassem as escolas dos por­tugueses. A partir do momento em que uma pessoa tinha um curso superior deixava de ser preto e passava a ser branco, es­sas contradições do colonialis­mo”. Em casa o pai alertava-os para essas diferenças, para que não se deixassem iludir.

Em 1955 vai para Portu­gal fazer o liceu. Ouve falar do PAIGC. Diz que quer dar o seu contributo para a luta de libertação. Ainda em Portugal conhece Amílcar Cabral e em 1962 consegue sair e vai estu­dar para a então Checoslová­quia.

Conakry é o destino seguin­te. Trabalha na escola piloto, criada para receber os filhos dos combatentes e os órfãos de guerra. Tinham de fazer tudo e era um ensino intensi­vo, porque os alunos não de­veriam ficar muito tempo na escola.“Procurávamos um cer­to equilíbrio, porque eramos acima de tudo anti colonialis­tas, nacionalistas no bom senti­do, queríamos o melhor para a nossa terra, melhor educação, melhor saúde, tudo. Cabral di­zia que o povo não lutava por ideias, lutava para ter uma boa casa, boa saúde, poder criar os filhos. O nosso trabalho foi so­bretudo esse”.

Houve poucas mulheres guerrilheiras. Não era para ser assim, mas a contestação levou Cabral a recuar. O mais impor­tante para o líder era a luta de libertação e para isso todos de­viam estar unidos. “Passámos a ser uma espécie de milicianas”, recorda Ana Maria Cabral, “aprendemos a manejar armas, mas era só para uma emergên­cia. Noutros países fizeram­-se destacamentos femininos, como na FRELIMO, mas aqui, uma questão de mentalidade não o permitiu. Eram países muito atrasados”.

Ser companheira de um ho­mem como Cabral não foi fácil e, considera, dava-lhe ainda mais responsabilidades. “He­sitei muito. Estive quase dois anos a pensar se aceitava ou não. Não só pela diferença de idade [17 anos], mas também por ele ser a figura que era. Eu dizia que não tinha arcaboiço, mas ele foi eliminando os meus argumentos e acabou por ser uma maravilha. Foi pena ser por pouco tempo”.

Durante o processo de luta, continua a aperceber-se que a emancipação da mulher está afinal presa por fios muito frá­geis. Numa visita a Argélia, ainda com Cabral, pergunta a um comandante argelino o que era feito de Djamila Bouhired e de Djamila Boupacha, duas figuras heróicas da luta con­tra os colonialistas franceses. A resposta deixa-a estarreci­da: as mulheres fizeram o seu trabalho na luta de libertação, agora que os argelinos já eram independentes voltaram para o seu devido lugar. “Os nossos homens pensaram a mesma coisa, embora não o tenham dito em voz alta, pelo menos, eu nunca ouvi. O problema da mulher ainda não foi ultrapas­sado, ainda há um longo cami­nho a percorrer”.

Quando Cabo Verde se tor­na independente, esta noção torna-se ainda maior. Foram criadas associações femininas, mas para assistir às reuniões as mulheres tinham de pedir au­torização aos maridos. “Lem­bro-me de uma reunião do sin­dicato em que eles disseram: podem assistir, mas fiquem caladinhas. Os homens não se aperceberam que as coisas ti­nham mudado”.

O choque do regresso ao arquipélago foi transversal, afectando mesmo os homens. “Ainda há pouco ouvi o ex-pre­sidente Pedro Pires dizer que não conhecíamos Cabo Verde. É verdade, saíram jovens, fica­ram anos fora e sem contactos com Cabo Verde, chegam e é uma realidade totalmente di­ferente. Teve de se fazer uma aprendizagem, houve erros, mas só assim é que se aprende”.

Apesar de tudo, Ana Maria Cabral diz que hoje tem uma certeza: “valeu a pena. Embo­ra houvesse muito sacrifício e muito sangue derramado, va­leu a pena”.

Todas as mulheres recebe­ram preparação militar, para serem uma espécie de reta­guarda, de última resposta, mas houve uma – Maria Ilídia da Cruz, mais conhecida por Tutu – que teve uma recruta muito mais puxada. Foi a úni­ca mulher que esteve em Cuba a treinar com o grupo que se preparava para invadir Cabo Verde, mas já lá vamos.

Maria Ilídia nasce na Boa Vista e cresce no Sal. É nesta última ilha, na altura não turís­tica, que começa a aperceber­-se das diferenças criadas pelo colonialismo. Havia tropas lá estacionadas, estava-se em plena 2ª Guerra Mundial, mas os soldados portugueses e os soldados cabo-verdianos esta­vam separados, até a comida era diferente. Na mesma altura vê o pai a ser agredido e preso, cresce a temer quem tinha pele branca.

Começa a notar que há algu­ma coisa que não está bem. As praias do Sal eram reservadas, havia dias para brancos e dias para negros, havia um mal­-estar que mais do que sentir­-se, podia ser visto. Só sabe o que é política mais tarde, já em Dakar, e resolve aderir à luta de libertação.

Integra o grupo que vai para Cuba por exigência de Cabral, mas não foi um caminho fácil. Os homens tinham resolvi­do excluí-la à revelia. Chega­ram mesmo a dizer ao líder do PAIGC que a Tutu não queria participar. Maria Ilídia fica a saber, conta a Cabral e este chama toda a gente para uma reunião, onde a combatente repete a história. “Ficaram to­dos com uma raiva terrível, se pudessem matavam-me. Foi Cabral que disse que eles não tinham esse direito e se eu que­ria ir, podia ir”.

“Sofri discriminação desde que quis participar na luta até agora. A participação foi apaga­da. Não gosto de mandar repa­ros. Mas, a verdade é que todos foram recebendo patentes, sem nenhuma restrição, mas eu tive restrições. Até que alguém dis­se que não podia ser e deram­-me a patente de capitão, mas foi quase como um favor”.

Em Cuba não tem direito a quaisquer privilégios por ser mulher. Corre montanha abai­xo e montanha acima, carre­gada com a mochila e a arma. Treina como os outros, dispara. A mulher que os homens não queriam ao lado passa a ser um exemplo para os companhei­ros, muitos, cansados, não têm coragem para desistir quando vêem a camarada lá na frente a correr. Além do treino militar, passa as noites na urgência do hospital, a ser preparada nas artes médicas.

O desembarque em Cabo Verde acaba por nunca aconte­cer. Seguem todos para a União Soviética, os homens para a marinha, Maria Ilídia para um hospital. Faz a preparação como auxiliar de enfermagem e segue para a Guiné, onde fica responsável pela preparação dos instrumentos e da sala de operações de urgência para os feridos de guerra.

Cabral tinha outros planos, quis que fosse para a Alemanha receber formação para parteira. De início Maria Ilídia diz que não, principalmente porque não entendia a língua. Cabral tem de lhe dizer que não estava a pedir, estava a mandar. Evi­tar que as mulheres morressem durante o parto, explicou-lhe, era uma frente de guerra como outra qualquer. Foi.

Está na Alemanha quando Cabral é assassinado. Entra em depressão. Quem a ajuda são os alemães, esse povo da língua esquisita, que até para a Mon­tanha a levam, para esquiar. Recupera e continua a sua for­mação.

É ainda na Alemanha que vê o 25 de Abril e assiste à alvora­da da liberdade para os países africanos. Pede na escola que lhe antecipem os exames para que possa assistir à cerimónia da independência em Cabo Verde. Consegue. Chega ao ar­quipélago no dia 2 de Julho de 1975, três dias antes da decla­ração da independência.

Entretanto, Luís Cabral ten­ta tudo para a fazer regressar à Guiné-Bissau, chega a tele­fonar a Aristides Pereira, que concorda com esse retorno. Em última instância, Tutu leva o seu diploma e mostra-o a Pedro Pires e é o então Primeiro-Ministro que in­siste na permanência de Maria Ilídia no arquipéla­go, dando assim uma nega ao Presidente guineense.

Vai para São Vicente onde encontra um cená­rio desolador. No Hospi­tal Baptista de Sousa, em 75, havia só duas pinças e uma tesoura para cor­tar o cordão umbilical dos recém-nascidos. Os instrumentos nem eram esterilizados, levavam um banho de álcool e eram postos novamente em ser­viço. Maria Ilídia resolve escrever para o instituto alemão onde estudara. Da Alemanha chegam seis toneladas de material médico. Mas, o trabalho tinha apenas começado. Era preciso, por exemplo, um lugar onde as mu­lheres pudessem ser atendidas e acompanhadas durante a gra­videz. “A medicina reprodutiva começou em São Vicente”, con­ta ao Expresso das Ilhas, “com mobília que levávamos de casa, cadeiras, camas, etc., todas apoiaram na altura”. A comu­nidade internacional mobiliza­-se e a Suécia manda material e recursos humanos.

Mas, as viagens de Tutu ain­da não tinham terminado. Sem os benefícios de outros com­panheiros de luta, que tinham direito, por exemplo, a juros bonificados para a compra de casa, teve de emigrar para jun­tar dinheiro. Acabou por traba­lhar em Portugal, com a Asso­ciação Abraço, no tratamento de doentes com VIH/SIDA. Hoje, vive novamente em São Vicente. Mágoas? “Bastantes. Há tempos, mandaram uma lista de soldados que estiveram em Cuba, fomos os primeiros a jurar bandeira, e esqueceram­-se de mim e de muitos outros. Mandaram para a Assembleia [Nacional] a lista dos coman­dantes e esqueceram-se de mim, outra vez”.

Como escreveu Ângela Be­noliel Coutinho, no artigo Mu­lheres na “Sombra” – As Cabo­-verdianas e a Luta de Liber­tação Nacional, se não se pre­servarem, ou se destruírem, as fontes históricas do século XX em Cabo Verde, não será possí­vel fazer uma História de Cabo Verde para esse século, nem uma História dos Cabo-verdia­nos, nem uma História das Mu­lheres Cabo-verdianas.

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Autoria:Expresso das Ilhas,20 jan 2020 6:32

Editado porSara Almeida  em  20 jan 2020 21:44

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