“Há sempre interessados nos ganhos políticos do populismo”

PorJorge Montezinho,19 jan 2020 9:41

Com uma longa carreira diplomática ao serviço da União Europeia, com passagens, como embaixador, por Cabo Verde, Moçambique, Ucrânia, Bielorrússia e Macedónia, mas também como chefe de missões humanitárias que o levaram à Bósnia e à Croácia, ou à Região dos Grandes Lagos, José Manuel Pinto Teixeira falou com o Expresso das Ilhas sobre alguns dos desafios globais da actualidade.

Quais considera serem as principais preocupações humanitárias actuais?

Penso que as preocupações humanitárias, infelizmente, continuam a ser as mesmas e com tendência a agravarem-se. O mundo, até à queda do Muro de Berlim, tinha dois blocos armados até aos dentes, mas apesar de toda a tensão existente ninguém se atrevia a enveredar por um conflito que seria um desastre para todos. Depois passámos para uma fase do mundo monopolar, em que praticamente era o Ocidente – Estados Unidos e Europa Ocidental – a única potência e depois enveredamos por um caminho do ressurgimento da Rússia, da China cada vez mais presente e a projectar a sua força. Vivemos actualmente num mundo de grande imprevisibilidade. Os conflitos que se desencadearam no Iraque, na Síria, no Líbano, não tiveram o fim que se esperava. A ideia que haveria em quem interferiu nesses países de que iriam criar democracias estáveis e assegurar o respeito pelos direitos humanos, obviamente, revelou uma grande falta de avaliação do que essas intervenções poderiam criar. E os resultados estão aí, os conflitos continuam, os refugiados continuam, há novas tensões, como com o Irão. Onde é que isso vai acabar? Não sei. Podemos avaliar as causas dos problemas, mas preocupamos-nos essencialmente com as consequências, principalmente com as tragédias humanitárias que eles criam, criaram e, infelizmente, não lhe vemos o fim. Temos também na África subsaariana o fenómeno das migrações, que não são provocadas por situações de perseguição política, de conflitos, mas por questões económicas: falta de perspectivas. O grande crescimento demográfico não é acompanhado por um crescimento económico que absorva o número, sempre a aumentar, de jovens que entram no mercado de trabalho. E essas pessoas têm de ir para algum sítio. As migrações sempre existiram ao longo da história, os pólos de desenvolvimento económico atraem os excedentes de mão-de-obra de onde não existem essas oportunidades. Esses fluxos existem, é uma migração ilegal, mas as leis europeias de protecção funcionam para todos.

Como se gere uma situação dessas num mundo cada vez menos solidário?

Claro que isto cria fenómenos, na Europa, de xenofobia, começa a haver incidentes, começa a haver a exploração étnica, racial ou religiosa desses incidentes, começa-se a criar estereótipos para determinadas camadas da população e isso gera fenómenos muito preocupantes. E isso não é novo. Nós não vivemos isso, mas na II Guerra Mundial o que aconteceu com os judeus? O que aconteceu com os ciganos? Com os eslavos? A forma como a Alemanha nazi criou estereótipos de todos esses grupos e chegou a fazer um genocídio. E era o país mais evoluído da Europa. Se isso foi possível… E não foi há muito tempo. Estes são os grandes desafios que, infelizmente, vemos cada vez mais presentes.

A Ordem de Malta é neutra, imparcial e apolítica, mas como estamos a assistir a todos os movimentos nacionalistas e populistas pergunto-lhe se acha que é um fenómeno para continuar ou é apenas um momento passageiro?

Penso que depende de como esses fenómenos vão evoluir. Há sempre quem esteja interessado, por ganhos políticos, a explorar essas questões. Na realidade, esses problemas para o comum dos cidadãos, não é algo que realmente exista. Mas quando há incidentes, que cada parte quer explorar, isso ganha proporções maiores, a atenção mediática aumenta, todas as pessoas se querem pronunciar sobre quem está certo e quem está errado, começa a explorar-se porque a estes se trata assim e aqueles se trata de outra maneira. Mesmo que não haja motivo para isso. É aqui que estes fenómenos têm origem, não é tanto o problema em si, mesmo em sociedades onde esses problemas nunca existiram.

Muitos destes fenómenos só são também possíveis por causa das redes sociais. Hoje, de um lado, temos todos os instrumentos digitais e, do outro, as instituições ditas tradicionais (políticas, sociais, etc.) que continuam a funcionar da mesma maneira há anos e muitas vezes não sabem ler a transformação que está a acontecer. Acha que falta esta compreensão de como o mundo funciona actualmente?

Isso não é um conflito, é falta de capacidade de lidar com esses conflitos. As instituições tradicionais, a forma, digamos, tradicional que têm de abordar essas questões é ultrapassada por essas tecnologias postas para usos indevidos com o objectivo de agitar, ou mesmo de criar as fake news. Não é verdade, mas pode-se fabricar com o objectivo de incitar. Sabemos que a sua circulação é muito rápida e começa toda a gente a partilhar, juntando outras fake news, ou opiniões, a decidir rapidamente quem está certo e quem está errado e isso divide as sociedades. Claro que isso serve a quem quer depois liderar essas sociedades divididas, em benefício próprio, que depois vai levar a um desastre porque esses líderes vão ter de explorar esses fenómenos que andaram a agitar para satisfazer a vontade dos seus eleitorados, ou dos seus apoiantes, naquilo que eles próprios os convenceu que era necessário fazer.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 946 de 15 de Janeiro de 2020. 

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Autoria:Jorge Montezinho,19 jan 2020 9:41

Editado porJorge Montezinho  em  11 out 2020 23:21

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